terça-feira, 29 de junho de 2010

Carta à bispa Evônia

Minha cara Evônia,

Minha esposa me falou do encontro casual que vocês duas tiveram no shopping semana passada. Ela estava muito feliz em rever você e relembrar os tempos do ginásio e da igreja que vocês frequentavam. Aí ela me contou que você foi consagrada pastora e depois bispa desta outra denominação que você tinha começado a frequentar.

Ela também me mostrou os e-mails que vocês trocaram sobre este assunto, em que você tenta justificar o fato de ser uma pastora e bispa, já que minha esposa tinha estranhado isto na conversa que vocês tiveram. Ela me pediu para ler e comentar seus argumentos e contra-argumentos. Não pretendo ofendê-la de maneira nenhuma – nem mesmo conheço você pessoalmente. Mas faço estes comentários para ver se de alguma forma posso ser útil na sua reflexão sobre o ter aceitado o cargo de pastora e de bispa.

Acho, para começar, que você ser bispa vem de uma atitude de sua comunidade para com as Escrituras, que equivale a considerá-la condicionada à visão patriarcal e machista da época. Ou seja, ela é nossa regra, mas não para todas as coisas. Ao rejeitar o ensinamento da Bíblia sobre liderança, adota-se outro parâmetro, que geralmente é o pensamento e o espírito da época.

E é claro, Evônia, que na nossa cultura a mulher – especialmente as inteligentes e dedicadas como você – ocupa todas as posições de liderança disponíveis, desde CEO de empresas a presidência da República – se a Dilma ganhar. Portanto, sem o ensinamento bíblico como âncora, nada mais natural que as igrejas também coloquem em sua liderança presbíteras, pastoras, bispas e apóstolas.

Mas, a pergunta que você tem que fazer, Evônia, é o que a Bíblia ensina sobre mulheres assumirem a liderança da igreja e se este ensino se aplica aos nossos dias. Não escondo a minha opinião. Para mim, a liderança da igreja foi entregue pelo Senhor Jesus e por seus apóstolos a homens cristãos qualificados. E este padrão, claramente encontrado na Bíblia, vale como norma para nossos dias, pois se baseia em princípios teológicos e não culturais. Reflita no seguinte.

1. Embora mulheres tenham sido juízas e profetisas (Jz 4.4; 2Re 22.14) em Israel nunca foram ungidas, consagradas e ordenadas como sacerdotisas, para cuidar do serviço sagrado, das coisas de Deus, conduzir o culto no templo e ensinar o povo de Deus, que eram as funções do sacerdote (Ml 2.7). Encontramos profetisas no Novo Testamento, como as filhas de Felipe (At 21.9; 1Co 11.5), mas não encontramos sacerdotisas, isto é, presbíteras, pastoras, bispas, apóstolas. Apelar à Débora e Hulda, como você fez em seu e-mail, prova somente que Deus pode usar mulheres para falar ao seu povo. Não prova que elas tenham que ser ordenadas.

2. Você disse à minha esposa que Jesus não escolheu mulheres para apóstolas porque ele não queria escandalizar a sociedade machista de sua época. Será, Evônia? O Senhor Jesus rompeu com vários paradigmas culturais de sua época. Ele falou com mulheres (Jo 8.10-11), inclusive com samaritanas (Jo 4.7), quebrou o sábado (Jo 5.18), as leis da dieta religiosa dos judeus (Mt 7.2), relacionou-se com gentios (Mt 4.15). Se ele achasse que era a coisa certa a fazer, certamente teria escolhido mulheres para constar entre os doze apóstolos que nomeou. Mas, não o fez, apesar de ter em sua companhia mulheres que o seguiam e serviam, como Maria Madalena, Marta e Maria sua irmã (Lc 8.1-2).

3. Por falar nisto, lembre também que os apóstolos, por sua vez, quando tiveram a chance de incluir uma mulher no círculo apostólico em lugar de Judas, escolheram um homem, Matias (At 1.26), mesmo que houvesse mulheres proeminentes na assembléia, como a própria Maria, mãe de Jesus (At 1.14-15) – que escolha mais lógica do que ela? E mais tarde, quando resolveram criar um grupo que cuidasse das viúvas da igreja, determinaram que fossem escolhidos sete homens, quando o natural e cultural seria supor que as viúvas seriam mais bem atendidas por outras mulheres (Atos 6.1-7).

4. Tem mais. Nas instruções que deram às igrejas sobre presbíteros e diáconos, os apóstolos determinaram que eles deveriam ser marido de uma só mulher e deveriam governar bem a casa deles – obviamente eles tinham em mente homens cristãos (1Tm 3.2,12; Tt 1.6) e não mulheres, ainda que capazes, piedosas e dedicadas, como você. E mesmo que reconhecessem o importante e crucial papel da mulher cristã no bom andamento das igrejas, não as colocaram na liderança das comunidades, proibindo que elas ensinassem com a autoridade que era própria do homem (1Tm 2.12), que participassem na inquirição dos profetas, o que poderia levar à aparência de que estavam exercendo autoridade sobre o homem (1Co 14.29-35). Eles também estabeleceram que o homem é o cabeça da mulher (1Co 11.3; Ef 5.23), uma analogia que claramente atribui ao homem o papel de liderança.

5. Você retrucou à minha esposa na troca de e-mails que nenhuma destas passagens se aplica hoje, pois são culturais. Mas, será, Evônia, que estas orientações foram resultado da influência da cultura patriarcalista e machista daquela época nos autores bíblicos? Tomemos Paulo, por exemplo. Será que ele era mesmo um machista, que tinha problemas com as mulheres e suspeitava que elas viviam constantemente tramando para assumir a liderança das igrejas que ele fundou, como você argumentou? Será que um machista deste tipo diria que as mulheres têm direito ao seu próprio marido, que elas têm direitos sexuais iguais ao homem, bem como o direito de separar-se quando o marido resolve abandoná-la? (1Co 7.2-4,15) Um machista determinaria que os homens deveriam amar a própria esposa como amavam a si mesmos? (Ef 5.28,33). Um machista se referiria a uma mulher admitindo que ela tinha sido sua protetora, como Paulo o faz com Febe (Rm 16.1-2)?

6. Agora, se Paulo foi realmente influenciado pela cultura de sua época ao proibir as mulheres de assumir a liderança das igrejas, o que me impede de pensar que a mesma coisa aconteceu quando ele ensinou, por exemplo, que o homossexualismo é uma distorção da natureza acarretada pelo abandono de Deus (Rm 1.24-28) e que os sodomitas e efeminados não herdarão o Reino de Deus (1Co 6.9-11)? Você defende também, Evônia, que estas passagens são culturais e que se Paulo vivesse hoje teria outra opinião sobre a homossexualidade? Pergunto isto pois em outras igrejas este argumento está sendo usado.

7. Tem mais, se você ainda tiver um tempinho para me ouvir. As alegações apostólicas não me soam culturais. Paulo argumenta que o homem é o cabeça da mulher a partir de um encadeamento hierárquico que tem início em Deus Pai, descendo pelo Filho, pelo homem e chegando até a mulher (1Co 11.3).[1] Este argumento me parece bem teológico, como aquele que faz uma analogia entre marido e mulher e Cristo e a igreja, “o marido é o cabeça da mulher como Cristo é o cabeça da igreja” (Ef 5.23). Não consigo imaginar uma analogia mais teológica do que esta para estabelecer a liderança masculina. E quando Paulo restringe a participação da mulher no ensino autoritativo –que é próprio do homem – argumenta a partir do relato da criação e da queda (1Tm 2.12-14).[2]

8. Você já deve ter percebido que para legitimar sua posição como bispa você teve que dar um jeito neste padrão de liderança exclusiva masculina que é claramente ensinado na Bíblia e na ausência de evidências de que mulheres assumiram esta liderança. Não tem como aceitar ser bispa e ao mesmo tempo manter que a Bíblia toda é a Palavra de Deus para nossos dias. E foi assim que você adotou esta postura de dizer que a liderança exclusiva masculina é resultado da cosmovisão patriarcal e machista dos autores do Antigo e Novo Testamentos, e que portanto não pode ser mais usada em nossos dias, quando os tempos mudaram, e as mulheres se emanciparam e passaram a assumir a liderança em todas as áreas da vida. Em outras palavras, como você mesmo confirmou em seu e-mail, a Bíblia é para você um livro culturalmente condicionado e só devemos aplicar dele aquelas partes que estão em harmonia e consenso com nossa própria cultura. Eu sei que você não disse isto com estas exatas palavras, mas a impressão que fica é que você considera a Bíblia como retrógrada e ultrapassada e que o modelo de liderança que ela ensina não serve de paradigma para a liderança moderna da Igreja de Cristo.

Quando se chega a este nível, então, para mim, a porta está aberta para a entrada de qualquer coisa que seja aceitável em nossa cultura, mesmo que seja condenada nas Escrituras. Como você poderá, como bispa, responder biblicamente aos jovens de sua igreja que disserem que o casamento está ultrapassado e que sexo antes do casamento é normal e mesmo o relacionamento homossexual? Como você vai orientar biblicamente aquele casal que acha normal terem casos fora do casamento, desde que estejam de acordo entre eles, e que acham que adultério é alguma coisa do passado?

Sabe Evônia, você e a sua comunidade não estão sozinhas nessa distorção. Na realidade esse pensamento é também popularizado por seminários de denominações tradicionais e professores de Bíblia que passaram a questionar a infalibilidade das Escrituras, utilizando o método histórico crítico, ensinando em sala de aula que Paulo e os demais autores do Novo Testamento foram influenciados pela visão patriarcal e machista do mundo da época deles. Só podia dar nisso... na hora que os pastores, presbíteros e as próprias igrejas relativizam o ensino das Escrituras, considerando-o preso ao séc. I e irremediavelmente condicionado à visão de mundo antiga, a igreja perde o referencial, o parâmetro, o norte, o prumo – e como ninguém vive sem estas coisas, elege a cultura como guia.

Termino reiterando meu apreço e respeito por você como mulher cristã e pedindo desculpas se não posso me dirigir a você, em nossa correspondência pessoal, como “bispa” Evônia. Espero que meus motivos tenham ficado claros.

Um abraço,

Augustus

NOTAS

[1] Esse encadeamento hierárquico se refere à economia da Trindade e trata das diferentes funções assumidas pelas Pessoas da Trindade na salvação do homem. Ontologicamente, Pai, Filho e Espírito Santo são iguais em honra, glória, poder, majestade, como afirmam nossas confissões reformadas.

[2] Veja minha interpretação desta passagem e de outras no artigo da Fides Reformata “Ordenação Feminina
Artigo extraido do blog : O tempora, o mores.
Autor: Augustus Nicodemus Lopes

sábado, 5 de junho de 2010

Jesus Não Era Cristão

Muita gente pensa que sim. Todavia, a religião de Jesus não era cristianismo. Explico. Jesus não tinha pecado, nunca confessou pecados, nunca pediu perdão a Deus (ou a ninguém), não foi justificado pela fé, não nasceu de novo, não precisava de um mediador para chegar ao Pai, não tinha consciência nem convicção de pecado e nunca se arrependeu. A religião de Jesus era aquela do Éden, antes do pecado entrar. Era a religião da humanidade perfeita, inocente, pura, imaculada, da perfeita obediência (cf. Lc 23:41; Jo 8:46; At 3:14; 13:28; 2Co 5:21; Hb 4:15; 7:26; 1Pe 2:22).

Já o cristão – bem, o cristão é um pecador que foi perdoado, justificado, que nasceu de novo, que ainda experimenta a presença e a influência de sua natureza pecaminosa. Ele só pode chegar a Deus através de um mediador. Ele tem consciência de pecado, lamenta e se quebranta por eles, arrepende-se e roga o perdão de Deus. Isto é cristianismo, a religião da graça, a única religião realmente apropriada e eficaz para os filhos de Adão e Eva.

Assim, se por um lado devemos obedecer aos mandamentos de Jesus e seguir seu exemplo, há um sentido em que nossa religião é diferente da dele.
Quando as pessoas não entendem isto, podem cometer vários enganos. Por exemplo, elas podem pensar que as pessoas são cristãs simplesmente porque elas são boas, abnegadas, honestas, sinceras e cumpridoras do dever, como Jesus foi. Sem dúvida, Jesus foi tudo isto e nos ensinou a ser assim, mas não é isso que nos torna cristãos. As pessoas podem ser tudo isto sem ter consciência de pecado, arrependimento e fé no sacrifício completo e suficiente de Cristo na cruz do Calvário e em sua ressurreição – que é a condição imposta no Novo Testamento para que sejamos de fato cristãos.

Este foi, num certo sentido, o erro dos liberais. Ao removerem o sobrenatural da Bíblia, reduziram o Jesus da história a um mestre judeu, ou um reformador do judaísmo, ou um profeta itinerante, ou ainda um exorcista ambulante ou um contador de parábolas e ditos obscuros que nunca realmente morreu pelos pecados de ninguém (os liberais ainda não chegaram a uma conclusão sobre quem de fato foi o Jesus da história, mas continuam pesquisando...). Para os liberais, todas estas doutrinas sobre o sacrifício de Cristo, sua morte e ressurreição, o novo nascimento, justificação pela fé, adoção, fé e arrependimento, foram uma invenção do Cristianismo gentílico. Eles culpam especialmente a Paulo por ter inventando coisas que Jesus jamais havia dito ou ensinado, especialmente a doutrina da justificação pela fé.

Como resultado, os liberais conceberam o Cristianismo como uma religião de regras morais, sendo a mais importante aquela do amor ao próximo. Ser cristão era imitar Cristo, era amar ao próximo e fazer o bem. E sendo assim, perceberam que não há diferença essencial entre o Cristianismo e as demais religiões, já que todas ensinam que devemos amar o próximo e fazer o bem. Falaram do Cristo oculto em todas as religiões e dos cristãos anônimos, aqueles que são cristãos por imitarem a Cristo sem nunca terem ouvido falar dele.

Se ser cristão é imitar a Cristo, vamos terminar logicamente no ecumenismo com todas as religiões. Vamos ter que aceitar que Gandhi era cristão por ter lutado toda sua vida em prol dos interesses de seu povo. A mesma coisa o Dalai Lama e o chefe do Resbolah.

Não existe dúvida que imitar Jesus faz parte da vida cristã. Há diversas passagens bíblicas que nos exortam a fazer isto. No Novo Testamento encontramos por várias vezes o Senhor como exemplo a ser imitado. Todavia, é bom prestar atenção naquilo em que o Senhor Jesus deve ser imitado: em procurarmos agradar aos outros e não a nós mesmos (1Co 10:33 – 11:1), na perseverança em meio ao sofrimento (1Ts 1:6), no acolher-nos uns aos outros (Rm 15:7), no andarmos em amor (Ef 5:23), no esvaziarmos a nós mesmos e nos submeter à vontade de Deus (Fp 2:5) e no sofrermos injustamente sem queixas e murmurações (1Pe 2:21). Outras passagens poderiam ser citadas. Todas elas, contudo, colocam o Senhor como modelo para o cristão no seu agir, no seu pensar, para quem já era cristão.

Não me entendam mal. O que eu estou tentando dizer é que para que alguém seja cristão é necessário que ele se arrependa genuinamente de seus pecados e receba Jesus Cristo pela fé, como seu único Senhor e Salvador. Como resultado, esta pessoa passará a imitar a Cristo no amor, na renúncia, na humildade, na perseverança, no sofrimento. A imitação vem depois, não antes. A porta de entrada do Reino não é ser como Cristo, mas converter-se a Ele.
Autor: Augusto Nicodemus
Extraido do Blog O Tempora, O Mores

O Calvinismo Segundo Entendo

Calvinistas estão entre as tradições religiosas mais mal compreendidas da história da Igreja. Sei perfeitamente que alguns deles fizeram por merecer. Há calvinistas que defendem suas convicções sem caridade, gentileza e sensibilidade para com quem diverge. Outros, não conseguem ouvir quem não seja calvinista. Não considero essas atitudes como intrínsecas ao calvinismo. As pessoas são assim porque lhes faltam domínio próprio e humildade, e não porque são calvinistas. Não há nada no calvinismo que exija que calvinistas sejam rudes, intransigentes, mal educados, excessivamente críticos e arrogantes.

Boa parte das acusações que têm sido feitas aos calvinistas, além de serem generalizações injustas, parecem proceder de uma falta de conhecimento adequado do que os calvinistas realmente acreditam. Como não falo por todos, vou dizer o que eu penso sobre alguns desses pontos mais polêmicos.

Para começar, o calvinismo não é um bloco monolítico. Há várias correntes dentro dele. Todas se vêem como legítimas herdeiras do legado de João Calvino, desde presbiterianos liberais até puritanos modernos. Considero-me um calvinista dentro da tradição teológica que elaborou e até hoje mantém a Confissão de Fé de Westminster, muito similar às demais confissões reformadas dos batistas, congregacionais, episcopais e reformados.

1 – Creio que Deus predestinou tudo o que acontece, mas não sou determinista. O Deus que determinou todas as coisas é um Deus pessoal, inteligente, que traçou seus planos infalíveis levando em conta a responsabilidade moral de suas criaturas. Ele não é uma força impessoal, como o destino. Não creio que os atos da vontade e da liberdade humanas sejam mera ilusão e que nossa sensação de liberdade ao cometê-los seja uma farsa, como o determinismo sugere. Eu acredito que as nossas decisões e escolhas são bem reais e que fazem a diferença. Elas não são uma brincadeira de mau gosto da parte de Deus. Os hipercalvinistas são deterministas quando negam a responsabilidade humana ou pregam a passividade dos cristãos diante de um futuro inexorável. Por desconhecer essa distinção, muitos pensam que todos os calvinistas são deterministas e que eles vêem o homem como um mero autômato.

2 – Creio que Deus é absolutamente soberano e onisciente sem que isso, contudo, anule a responsabilidade do homem diante dele. Para mim, isso é um mistério sem solução debaixo do sol. Não sei como Deus consegue ser soberano sem que a vontade de suas criaturas seja violentada. Apesar disto, convivo diariamente com essas duas verdades, pois vejo que estão reveladas lado a lado nas Escrituras, às vezes num mesmo capítulo e até num mesmo versículo! (Ex: Atos 2:23).

3 – Encaro a relação entre a soberania de Deus e a responsabilidade humana como sendo parte dos mistérios acerca do ser Deus, como a doutrina da Trindade e das duas naturezas de Cristo. A soberania de Deus e a responsabilidade humana têm que ser mantidas juntas num só corpo, sem mistura, sem confusão, sem fusão e sem diminuição de ambas.

4 – Creio que Deus predestinou desde a eternidade aqueles que irão se salvar e, ao mesmo tempo, oro pelos perdidos, evangelizo e contribuo para a obra missionária. Grandes missionários da história das missões eram calvinistas convictos. Calvinistas pregam sermões evangelísticos e instam para que os pecadores se arrependam e creiam. Se quiserem um bom exemplo, leiam O Spurgeon que Foi Esquecido, de Iain Murray, publicado pela PES. Nunca as minhas convicções sobre a predestinação me impediram de ir de porta em porta, oferecendo o Evangelho de Cristo a todos, sem exceção. Após minha conversão, e já calvinista, trabalhei como evangelista e plantador de igrejas durante vários anos, em Pernambuco.

5 – Creio que Deus já sabe, mas oro assim mesmo. Sei que ele ouve e responde, e que minhas orações fazem a diferença. Contudo, sei que ao final, através de minhas orações, Deus terá realizado toda a sua vontade. Não sei como ele faz isso. Mas, não me incomoda nem um pouco. Não creio que minha oração seja um movimento ilusório no tabuleiro da predestinação divina.

6 – Não creio que Deus predestinou todos para a salvação. Da mesma forma, não creio que ele foi injusto nem fez acepção de pessoas para com aqueles que não foram eleitos. Não creio que Deus tenha predestinado inocentes ao inferno, pois não há inocentes entre os membros da raça humana. E nem que ele tenha deixado de conceder sua graça a pessoas que mereciam recebê-la, pois igualmente não há pessoa alguma que mereça qualquer coisa de Deus, a não ser a justa condenação por seus pecados. Deus predestinou para a salvação pecadores perdidos, merecedores do inferno. Ao deixar de predestinar alguns, ele não cometeu injustiça alguma, no meu entender, pois não tinha qualquer obrigação moral, legal ou emocional de lhes oferecer qualquer coisa. Penso assim pois entendo que a Queda de Adão veio antes da predestinação na seqüência lógica (não na seqüência histórica) em que Deus elaborou o plano da salvação.

7 – Creio que Deus sabe o futuro, não porque previu o que ia acontecer, mas porque já determinou tudo que acontecerá. Por isso, entendo que a presciência de que a Bíblia fala é decorrente da predestinação, e não o contrário. Quem nega a predestinação e insiste somente na presciência de Deus com o alvo de proteger a liberdade do homem tem muitos problemas. Quem criou o que Deus previu? E, se Deus conhece antecipadamente a decisão livre que um homem vai tomar no futuro, então ela não é mais uma decisão livre. Nesse ponto, reconheço a coerência dos socinianos e dos teólogos relacionais, que sentiram a necessidade de negar não somente a soberania, mas também a presciência de Deus, para poderem afirmar a plena liberdade humana.

8 – Creio que apesar de ter decretado tudo que existe desde a eternidade, Deus acompanha a execução de seus planos dentro do tempo, e se comunica conosco nessa condição. Quando a Bíblia fala de um jeito que parece que Deus nem conhece o futuro e que muda de idéia o tempo todo, é Deus falando como se estivesse dentro do tempo e acompanhando em seqüência, ao nosso lado, os acontecimentos. É a única maneira pela qual ele pode se fazer compreensível a nós. Quem melhor explica isso é John Frame, no livro Nenhum Outro Deus, lançado pela Editora Cultura Cristã. Minha esposa teve o privilégio de traduzir e eu de prefaciar essa obra, a primeira em português a combater a teologia relacional.

9 – Creio que Deus é soberano e bom, mas não tenho respostas lógicas e racionais para a contradição que parece haver entre um Deus soberano e bom que governa totalmente o universo, por um lado, e por outro, e a presença do mal nesse universo. Diante da perversidade e dos horrores desse mundo, alguns dizem que Deus é soberano mas não é bom, pois permite tudo isto. Outros, que ele é bom mas não é soberano, pois não consegue impedir tais coisas. Para mim, a Bíblia diz claramente que Deus não somente é soberano e bom – mas que ele é santo e odeia o mal. Ao mesmo tempo, a Bíblia reconhece a presença do mal do mundo e a realidade da dor e do sofrimento que esse mal traz. Ainda assim, não oferece qualquer explicação sobre como essas duas realidades podem existir ao mesmo tempo. Simplesmente pede que as recebamos, creiamos nelas e que vivamos na cereteza de que um dia ele haverá de extinguir completamente o mal e seus efeitos nesse mundo.

10 – Estou convencido que o calvinismo é o sistema doutrinário mais próximo daquele ensinado na Bíblia, ao mesmo tempo em que confesso que ele não tem todas as respostas. Todavia, estou convencido que os demais sistemas têm menos respostas ainda. Leio autores das mais diferentes persuasões teológicas. Às vezes tenho sido mais desafiado e tenho aprendido mais com livros de outras tradições. Não deixo de ouvir alguém somente porque não é calvinista. Há calvinistas que não são assim. Contudo, é uma injustiça acusar a todos de estreiteza, sectarismo, obscurantismo e preconceito.

Espero ter deixado claro que um calvinista, para mim, é basicamente um cristão que tem a coragem de aceitar as coisas que a Bíblia diz sobre a relação entre Deus e o homem e reconhecer que não tem explicações lógicas para elas. Para muitos, esse retrato é de alguém teologicamente fraco e no mínimo confuso. Mas, na verdade, é o retrato de quem deseja calar onde a Bíblia se cala.
Autor: Augusto Nicodemus
Extraido do Blog O Tempora, O Mores.